sábado, 31 de maio de 2014

Análise de CAMÕES versus MATTOSO

ÁNALISE DE POESIA CLÁSSICA versus POESIA CONTEMPORÂNEA: Camões e Glaco Mattoso
Angela Maria J. Vitor                                 
Gabriela Rovero do Nascimento      
Marcelo De’Omena Alves                
Teresinha Ferreira da Cruz              

 

RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo efetuar uma análise comparativa de sonetos, diacronicamente, entre os períodos clássico e contemporâneo, sob uma perspectiva histórica, estética e social distintas. Para isso, foi utilizado como corpus de análise, poemas de Luís Vaz de Camões e Glauco Mattoso. O intuito é demonstrar as diferenças e semelhanças entre os autores e o modus operandi de produção, ou seja, os aspectos envolvidos e considerados na e para a construção dos sonetos.

PALAVRAS-CHAVE: soneto; clássico; contemporâneo; Camões; Glauco.




INTRODUÇÃO:
Camões e o Clássico:
   O Renascimento foi um dos períodos mais férteis da cultura ocidental: Dante, Camões, Petrarca, Shakespeare, Rabelais, Ronsard, Cervantes, Tasso, Ariosto, Michelangelo e Da Vinci, entre outros. É um período marcado pela supervalorização do homem, pelo antropocentrismo, pelo hedonismo (doutrina que considera o prazer individual e imediato como o único bem possível, princípio e fim da vida moral) em oposição ao teocentrismo, misticismo e ascetismo medievais.

Neste período, Portugal vive o apogeu da nação, cujo Império, à semelhança do Império inglês do século XIX, abrangia do Oriente (China, Índia) ao Ocidente (Brasil), e marca, com Camões, a plena maturação da língua portuguesa.

Ainda que, já no fim da Idade Média, os autores da Antiguidade clássica fossem conhecidos em Portugal, só se pode falar em um estilo renascentista expressivo a partir de 1527. Neste ano, o poeta Sá de Miranda retorna da Itália, onde viveu entre 1520 e 1526, em contato com a literatura da Renascença italiana, com o “dolce stil nuovo”, e inicia a divulgação, em Portugal, das modalidades poéticas clássicas.

Esse conjunto de procedimentos artísticos, chamados em Portugal de “A Medida

Nova”, consistia em:

a)    Utilização de versos decassílabos, em lugar de redondilhas tradicionais;

b)    Predileção pelas formas fixas, inspiradas nos modelos latinos e italianos, como: o soneto, o terceto, a oitava, a ode, a elegia, e outras;

c)    Na assimilação da influência formal e temática de autores como: Horácio, Ovídio, Virgílio, Homero, Anacreonte, Sannazaro, e outros, além da releitura de filósofos gregos como Platão e Aristóteles.

O soneto é uma composição de forma fixa, com 14 versos, dispostos em 4 estrofes, sendo 2 quartetos (ou quadras) e 2 tercetos. O desenvolvimento das ideias subordina-se ao limite das estrofes. 

Introduzido em Portugal por Sá de Miranda, em 1527, coube a Camões assegurar o triunfo do gênero, mercê de sua irresistível vocação lírica; do seu gosto pela análise das finezas do sentimento amoroso; do equilíbrio entre agudeza conceitual, a perfeição e a expressão comovida dos transes existenciais do poeta; da musicalidade feliz que, por trás do rigor da construção, faz parecerem espontâneos os decassílabos. Os sonetos de Camões são a parte mais conhecida de sua lírica; os melhores que escreveu são os melhores de toda a literatura de língua portuguesa.

No soneto, atinge Camões uma admirável e rara variedade. O soneto se presta a exercícios de engenho, como o vilancete e outras formas tradicionais; embora por outro lado, a sua disposição em duas quadras e dois tercetos favoreça um discurso em tese e antítese, seguidas de conclusão e desfecho sentenciosos; e por outro ainda, essa mesma brevidade seja apropriada a uma grande concentração emocional.

O tom confidente e o individualismo exacerbado pela hostilidade do meio, o inconformismo que luta pela sobrevivência, expressos com uma intensidade que não tem paralelo em qualquer outro escritor clássico, conferem a Camões de algumas canções e sonetos um caráter congênere daquele a que se convencionou chamar “romântico”. Mas, em meio a este desabafo, o poeta conserva-se atento ao desenrolar dos seus estados de espírito, à sucessão das emoções, recordações, desejos, pensamentos, às respectivas contradições e aparente irracionalidade. É uma inquirição que procura saída para as aspirações mais íntimas, através das mudanças de um mundo hostil e impossível de ignorar na sua objetividade. A realidade deste mundo é incomensurável com os ideais cavalheirescos e letrados, com a ética religiosa e medieval, com a razão classificatória e escolástica, com o estilo gótico literário.

A experiência vivida e cultural de Camões, mal pode cingir-se às convenções da sociedade da época. E assim, registra o conflito (e união) entre o desejo carnal e o ideal do amor desinteressado, que consiste só no “fino pensamento”. A beleza das coisas terrenas não passa de uma imitação da Beleza plena, que existe substancialmente em um mundo a que este escreve somente de sombra.


VENCIDO ESTÁ DE AMOR

Luís Vaz de Camões

Vencido está de amor Meu pensamento
O mais que pode ser Vencida a vida,
Sujeita a vos servir e Instituída,
Oferecendo tudo A vosso intento.

Contente deste bem, Louva o momento
Outra vez renovar Tão bem perdida;
A causa que me guia A tal ferida,
Ou hora em que se viu Seu perdimento.

Mil vezes desejando Está segura
Com essa pretensão Nesta empresa,
Tão estranha, tão doce, Honrosa e alta

Voltando só por vós Outra ventura,
Jurando não seguir Rara firmeza,
Sem ser no vosso amor Achado em falta.



Glauco Mattoso e o Contemporâneo:
   Dos movimentos diversos da poesia contemporânea, não nos escapa aos olhos certa produção que lança mão do trabalho com o verso livre ao recuperar o uso do soneto, e ainda, apresenta como traço predominante o erótico e o escatológico, numa poesia que dialoga constantemente com um grupo seleto de poetas de nossa tradição, como Gregório de Mattos a Haroldo de Campos.

     Falamos aqui da poesia de Glauco Mattoso, autor que já construiu certa fortuna literária, mas ainda causa furor por onde passa: seja pelos temas provocantes, pelas provocações aos pares, ou ainda pela fama, já comprovada, de ser o poeta com maior número de sonetos produzidos em língua portuguesa.

     Glauco Mattoso, pseudônimo de Pedro José Ferreira da Silva, nascido em São Paulo, a 29 de junho de 1951, é um escritor brasileiro. Seu nome artístico é um trocadilho com glaucomatoso, termo usado para os que sofrem de glaucoma, doença que o fez perder progressivamente a visão, até a cegueira total em 1995. É também uma alusão a Gregório de Mattos, de quem se considera herdeiro na sátira política e na crítica de costumes.

     Glauco cursou biblioteconomia na Escola de Sociologia e Política de São Paulo e letras vernáculas na USP. Nos anos 70, no auge da ditadura militar, iniciou sua carreira, editando o Jornal Dobrábil (título que faz referência irônica ao Jornal do Brasil), publicação artesanal de pequena tiragem feita em máquina de datilografia, que era distribuída pelo correio a um grupo seleto de leitores, como Augusto de Campos e Carlos Drummond de Andrade. A publicação apresentava poemas visuais com nítida influência da Poesia Concreta, mas de conteúdo satírico, com referências à situação política do país, e uma coloquialidade e irreverência típicas da Poesia Marginal, de Cacaso e Francisco Alvim, da qual foi contemporâneo.

     Os poemas e breves crônicas que publicou no Jornal Dobrábil, usando diversos pseudônimos, como Garcia Loca, já traziam a temática urbana, homoerótica e fescenina, que acompanhariam toda a obra do autor, bem como o interesse pelas formas fixas, como o soneto e o haicai.

     Glauco Mattoso cultiva a fama de escritor maldito com suas preferências excêntricas. Ele é obcecado por pés masculinos, fetiche retratado tanto na prosa quanto na poesia. O pé e a cegueira são temas centrais de muitos de seus livros. Através da perversão sexual, o autor denuncia as perversidades sociopolíticas. Sua temática, que funciona como alicerce do próprio soneto, abusa da pornografia e escatologia, assim como os versos do poeta fescenino do século 17, cuja referência é explícita. Escritas na forma do soneto, com métrica e rimas, suas composições destoam, no entanto, de qualquer vocação conservadora, usando a gíria, o palavrão e a pornografia, numa época marcada pela forte censura, que levou à interdição de filmes, livros e músicas acusados de conteúdo “imoral” ou “subversivo”.

     As referências de Glauco Mattoso passam de Camões a Augusto de Campos, de Gregório de Matos a Luiz Delfino, de Sade a Cego Aderaldo, de Olavo Bilac a Millôr Fernandes.

     O crítico e ensaísta carioca Pedro Ulysses Campos já dividiu a poesia de Glauco Mattoso em duas fases: “a primeira seria a Fase Visual (1970–1980), enquanto o poeta praticava um experimentalismo paródico de diversas tendências contemporâneas; e a segunda a Fase Cega (1999 até hoje), quando o autor, já privado da visão, abandona os processos artesanais, tais como o concretismo datilográfico, e passa a compor sonetos e glosas”.

     Em fevereiro de 2008, o escritor completou 2.300 (dois mil e trezentos) sonetos de uma série iniciada em 1999, superando a histórica marca do italiano Giuseppe Belli (1791-1863), que, em 1849, teria composto, segundo consta, seu soneto de número 2.279 numa obra produzida, mormente, entre 1830 e 1839. Mattoso tem com Belli outra afinidade, além da copiosa produção: a sátira fescenina, que abusa da pornografia e da escatologia. Também no aspecto lingüístico há paralelos: Belli versejava no dialeto romanesco, falado na periferia da capital italiana, enquanto Mattoso incorpora ao português brasileiro as gírias suburbanas e os neologismos contraculturais da segunda metade do século XX, de mistura com o vernáculo castiço e com o rigor formal, típicos do soneto clássico, composto em decassílabos predominantemente heróicos. A diferença entre ambos os "malditos" está na postura: Belli cedeu às pressões moralistas e aderiu à autoridade católica, renegando o anticlericalismo que caracterizara sua temática; Mattoso se mantém anarquicamente independente de quaisquer ideologias ou fisiologias, fiel unicamente à sua biografia de cego sadomasoquista e fetichista. Belli, mundialmente reconhecido, foi traduzido também para o inglês; Mattoso, que tem sido objeto de estudos acadêmicos na América Latina e nos Estados Unidos, alcança agora as universidades européias.

     A partir dos anos 90, deixa de lado a criação gráfica (história em quadrinhos e poesia concreta) e passa a dedicar-se a escrever letras de músicas e à produção fonográfica. Com o professor da USP Jorge Schwartz, ganha o Prêmio Jabuti pela tradução que ambos fazem da obra inaugural de Jorge Luis Borges, Fervor de Buenos Aires.

Nos anos mais recentes, retorna à criação de poesia escrita e textos virtuais, produzindo textos e poesias para a internet, colaborando em revistas eletrônicas e impressas, tais como a Caros Amigos.

 

SONETO MASOQUISTA

Glauco Mattoso

 Político só quer nos ver morrendo
na merda, ao deus-dará, sem voz, sem teto.
Divertem-se inventando outro projeto
de imposto que lhes renda um dividendo.

 
São tão filhos da puta que só vendo,
capazes de criar até decreto
que obrigue o pobre, o cego, o analfabeto
a dar mais do que vinha recebendo.

 
Se a coisa continua nesse pé,
Acabo transformado no engraxate
Dum senador qualquer, dum Zé Mané.

 
Vou ser levado, a menos que me mate,
à torpe obrigação de amar chulé,
lamber feito cachorro que não late.

 
 

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

    Camões é grande, dentro e fora dos quadros literários portugueses, por sua poesia. Homero, Horácio, Virgílio, Ovídio, Petrarca, Boscán, Garcilaso constituem alguns de seus autores preferidos.

     Desenvolveu, com Sá de Miranda e outros poetas do século XVI, uma produção lírica de duas medidas: de um lado, a maneira medieval, tradicional, a poesia em “medida velha”, expressa nas redondilhas (nome genérico dos poemas formados do verso redondilho maior, isto é, sete sílabas, ou redondilho menor, de cinco sílabas); de outro, a maneira clássica, renascentista, a poesia em “medida nova”, subdividida em lírica, vazada em sonetos, odes, elegias, canções, églogas, sextinas e oitavas, e em épica.

     Se suas redondilhas em motes e glosas são produto refinado de um talento criativo e perspicaz, seus sonetos constituem a mais importante produção lírica em português de todos os tempos — afinal, as soluções rítmicas e rimáticas, o domínio versátil do decassílabo, a fluência sintática que confere raro poder dramático à leitura, a associação inusitada de metáforas e imagens, os temas de uma atualidade surpreendente, fizeram da sonetística camoniana um modelo e uma inspiração para toda a produção poética de nossa língua até hoje.

     O tema constante da produção lírica camoniana é o Amor — assim grafado por representar a ideia, a essência, o ser supremo que governa o sentimento amoroso do plano concreto humano.

     Já os poemas de Glauco Mattoso são representativos do diálogo entre tradição e inovação na poesia contemporânea de língua portuguesa. A multiplicidade - de suportes, de práticas de leitura e de autoria, de programas poéticos, políticos, existenciais - é visível na poesia brasileira. Em seus livros impressos e em seu site oficial, dialoga com diversos períodos e poetas e experimenta diversas formas de produção e circulação do poema na contemporaneidade. Leitor e autor confundem-se nos versos produzidos por Mattoso.

     Sua publicação apresenta poemas visuais com nítida influência da Poesia Concreta, mas de conteúdo satírico, com referências à situação política do país, e uma coloquialidade e irreverência típicas da Poesia Marginal.

     Os poemas e breves crônicas trazem a temática urbana, homoerótica e fescenina, que acompanham toda a obra do autor, bem como o interesse pelas formas fixas, como o soneto e o haicai. Através da perversão sexual, o autor denuncia as perversidades sociopolíticas. Sua temática, que funciona como alicerce do próprio soneto, abusa da pornografia e escatologia.

     Glauco Mattoso organizou seus sonetos em séries, abordando temas como a culinária, o cinema, a geografia, a política, a religião, entre outros. Mattoso é hoje um dos mais conhecidos poetas brasileiros.

 
 
REFERÊNCIAS:
- MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa  - 35ª reimpressão da 1ª. ed. de 1960 – São Paulo: Cultrix, 2008 (págs. 65-162);
- http://www.uel.br/pos/letras/EL/vagao/EL9Art3.pdf
- http://revistacult.uol.com.br/home/2013/03/glauco-mattoso-o-anjo-de-botas-carcomidas/
- http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/sao_paulo/glauco_mattoso2.html
- http://www.saraivaconteudo.com.br/Materias/Post/10588
- http://pt.wikipedia.org/wiki/Glauco_Mattoso